Na pesquisa, o ideal é ser científico, acadêmico e crítico

No artigo “What kind of science can Information Science be?” [Que tipo de ciência pode ser a Ciência da Informação?], publicado em 2012, o professor da Universidade de Berkeley Michael Buckland define o que deve caracterizar o ato de pesquisa e a postura do pesquisador:

Apesar da palavra ciência ser às vezes aplicada de maneira para qualquer corpo de conhecimento (por exemplo, domestic science [“ciência doméstica”; em português, usa-se “economia doméstica”], library science [“ciência de biblioteca”; em português, usa-se “biblioteconomia”]), aqui nós a usamos no sentido normativo que designa as ciências físicas e formais (por exemplo, a química, a matemática e a física). A ciência é um empreendimento construtivo. Ser científico envolve a montagem de modelos. Hipóteses e teorias são desenvolvidas para explicar e para predizer fenômenos observáveis. Ser acadêmico envolve mais do que ser erudito. Exige a busca ativa por evidências contrárias às nossas teorias. Isso vale para todos os campos: para as humanidades, as ciências sociais, as ciências e as práticas profissionais. Neste contexto, ser crítico não é uma questão de ser hostil ou negativista, mas de fazer perguntas sobre premissas e escolhas metodológicas. Como as conclusões a que chegamos foram determinadas, ou pelo menos influenciadas, por certas pressuposições e decisões de método? O ideal é ser científico e acadêmico e crítico. Quanto mais nos aproximarmos desse ideal, mas robustas as nossas ideias serão.[1]Tradução de: “Although the word science is sometimes used broadly for any body of knowledge (e.g., domestic science, library science), here we are using it in the normative sense as denoting … Continue reading

São, assim, três facetas: o ser científico, o ser acadêmico, o ser crítico. “Ser científico” é uma relação com o objeto: observar e propor meios de compreensão; é planejar e construir, como ele enfatiza. Já “ser acadêmico” tem um vetor destrutivo, por assim dizer, pois deve se voltar contra o que se erigiu – para saber se fica de pé. Entre “ser científico” e “ser acadêmico” pode, portanto, se estabelecer um círculo virtuoso no qual o fenômeno é a cada vez melhor delineado. Por fim, “ser crítico” é questionar as bases sobre as quais somos científicos ou acadêmicos: como observamos, em que esquemas compreendemos, sob que critérios planejamos, com quais materiais construímos?

Veja também:
>> “É possível ensinar pensamento crítico?“, por Rafael Teixeira

Na medida em que Buckland descreve o trio científico-acadêmico-crítico como um ideal, temos que ele constitui o horizonte de pesquisa e deve orientar a subjetividade do pesquisador – contudo, no contato com a realidade pode sofrer modulações. Dadas as condições de cada investigação, dados os momentos específicos pelos quais passa, o quão científicos, acadêmicos e críticos estamos sendo? Essa parece ser a pergunta sugerida por ele.

References

References
1 Tradução de: “Although the word science is sometimes used broadly for any body of knowledge (e.g., domestic science, library science), here we are using it in the normative sense as denoting formal and physical sciences (e.g., chemistry, mathematics, and physics). Science is a constructive enterprise. Being scientific involves model-building. Hypotheses and theories are developed to explain and to predict observable phenomena. To be scholarly involves more than being knowledgeable. It requires the affirmative search for evidence contrary to one’s theories. This is true for all fields: in the humanities, the social sciences, the sciences, and professional practices. In this context, being critical is not a matter of being hostile or negative, but of asking questions about underlying assumptions and methodological choices. How have conclusions been determined, or at least influenced, by particular assumptions or the choice of method? The ideal is to be scientific and scholarly and critical. The more we can approach that ideal the more robust our ideas will be”.

O Que é Filosofia da Ciência?


Trechos selecionados do artigo “O que Filosofia da Ciência pode nos ensinar sobre os problemas da informação?“, de Rafael Teixeira, que se desdobrou também em um podcast.


A filosofia da ciência é um ramo específico da filosofia que se propõe a fazer um discurso sobre a ciência, seja para elaborar críticas à metodologia científica e ao discurso científico contemporâneo, seja para defender o projeto científico e elaborar bases mais sólidas para esse discurso. […]

Veja também:
>> “Luciana Zaterka: Filosofia da Química, Nietzsche e Transhumanismo“, entrevista por Duanne Ribeiro
>> “Os modos de existir de Bruno Latour“, por Tiago Salgado

Filosofia da ciência é um ramo de uma área maior da filosofia que chamamos de epistemologia. Este seria o estudo do conhecimento, seu funcionamento e suas possibilidades. Em nosso tempo, provavelmente porque a ciência passou a ter grande destaque na nossa sociedade e a se mostrar como a forma de conhecimento com maior sucesso e maior prestígio, o ramo da epistemologia que se debruçou sobre a ciência passou a crescer muito e a dominar o discurso da área (gerando até críticas da parte de filósofos de que a epistemologia mais geral estaria sendo esquecida em favor dessa filosofia da ciência).

História

[…] a filosofia da ciência em seu percurso sempre aparentou ser um ramo que direcionava um enfoque sobre a ciência, mas com pretensões de ser um pouco mais. Apareceu principalmente como um discurso que se debruçava sobre as ditas ciências naturais para avaliar seus avanços e a segurança de seu conhecimento.

Em específico, boa parte de uma primeira leva da filosofia da ciência parecia tecer avaliações sobre a física e áreas próximas a ela, sendo que isso se tornou até uma crítica recorrente, de que nosso ramo se dedicava muito à física e ignorava as particularidades de outras áreas científicas. Isso não foi, no entanto, arbitrário. A física se mostrou repetidamente uma área bastante sólida e causou forte impressão. Pierre Duhem, em seus textos muito pertinentes de filosofia da ciência, fazia antes de tudo um discurso sobre a física (ele mesmo era um físico), mas não sem deixar escapar pretensões maiores, de que a física matemática, sendo a ciência mais aperfeiçoada e precisa, era um modelo para as outras ciências, esperando que esse modelo fosse seguido.

Obra de Eduardo Loxley

Karl Popper foi pessoalmente muito tocado pelo poderio teórico da física no acontecimento histórico em que a teoria de Albert Einstein previa um fenômeno ainda não observado anteriormente, e que foi confirmado no eclipse de 1929. Era muito poderoso esse modelo de conhecimento capaz do que chamamos de “poder preditivo”: de tal forma conseguia apreender a realidade (ao menos num discurso de realismo científico como o de Popper) que conseguiu prever dados empíricos antes que eles ocorressem. Einstein previu que a gravidade de um objeto muito massivo poderia curvar a trajetória da luz (que se supunha ser sempre reta) e no eclipse foi possível tirar fotos das estrelas por trás do sol, cuja luz passava próxima a ele, e observar que suas posições estavam realmente erradas, ou seja, a luz curvou sua trajetória ao se aproximar do Sol e chegou na câmera num ponto diferente do que normalmente chegava no céu noturno.

O poder da física chocava, e hoje mais ainda o poder das ciências em geral, em especial os desenvolvimentos biológicos e suas capacidades de intervenção tecnológica. Entretanto, uma filosofia que se detém na tarefa de abordar esses diferentes campos científicos acaba esbarrando em suas particularidades, e antes de se unificar num discurso só sobre o conhecimento ela se fragmenta em filosofia da física, filosofia da biologia, filosofia da química e mesmo filosofia da medicina etc.

Ainda assim é recorrente que discursos inicialmente direcionados para ciências específicas, como o sobre a física do Duhem, ou aquele sobre as ciências mais experimentais, como o de Popper (e ele tinha critérios bastante rígidos para determinar o que era ciência ou não, com seu conceito de falseabilidade) foram muitas vezes tomados como influência e generalizados como ferramentas para ajudar a pensar outras formas de ciências, como as ciências humanas, ou mesmo conhecimento no geral.

Por que pesquisar, Thaís Almeida?

Trecho de uma entrevista da série Da Pesquisa Brasileira. Leia completa

Precisamos entender o mundo onde vivemos se queremos continuar vivendo nele. As pessoas se esquecem que somos animais nessa teia que é a biota da Terra, só uma pequena parte desse aspecto físico do universo. Se não quisermos nos extinguir, precisamos compreender todos os aspectos que são tangíveis a nós (dadas as nossas limitações), para superarmos as dificuldades que a nossa espécie enfrenta e vai enfrentar cada vez mais no futuro, para sobreviver. A pesquisa fornece esse conjunto de informações. Mesmo não parecendo que cada informação em si seja relevante, está tudo conectado e precisamos de todas as peças possíveis para entender o mundo se quisermos sobreviver. O modelo atual de vida do Homo Sapiens, exaurindo e poluindo os recursos como se isso não fosse alterar o próprio ambiente onde vivemos, já se mostrou catastrófico. O crescimento descontrolado da população é, para mim, um dos principais problemas subjacentes a toda essa crise e eu não tenho visto ninguém abordando isso com a urgência merecida. Pode parecer idealista, mas sem a ciência e sem o conhecimento básico e aplicado sendo construído, revisto e expandido a cada dia, iremos nos extinguir, como qualquer outra espécie que já existiu.

Além desse propósito imediato, a pesquisa é o empreendimento humano que nos afasta mais da nossa animalidade. Imagina, somos animais capazes de explorar e criar explicações (mesmo que limitadas, mesmo que imperfeitas), sobre nós mesmos, sobre o ambiente em volta de nós. Somos capazes de fazer extrapolações sobre áreas tão distantes do universo que provavelmente nunca visitaremos (mas que conseguimos enxergar). Pensamos sobre o que não vemos, o que já existiu e o que já ocorreu, o que irá existir e o que irá ocorrer. Do ponto de vista pessoal, é uma forma fascinante de se viver.

Thaís Almeida é doutora e mestre em biologia vegetal pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e graduada em ciências biológicas pela mesma instituição. É pesquisadora e professora da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa), em Santarém.